
Há muito a cachaça deixou de ser vista como bebida de segunda classe e passou a frequentar os balcões das melhores barras de coquetelaria do país.
Ou as cartas de estabelecimentos — bares e restaurantes — especializados em oferecer uma quantidade sideral de rótulos, produzidos no Brasil, da Amazônia aos Pampas.
Segundo um dos principais estudiosos da bebida no país, o empresário José Lúcio Ferreira, fundador e diretor da Expocachaça, ainda há uma certa falta de conhecimento sobre o destilado mais popular, ainda mais quando se trata de produção de alambique. As maneiras de se produzir cachaça são tantas que é preciso um bocado de estudo e dedicação para dominar o assunto, se a vontade é a de se tornar um especialista como ele.
Se o caso é só beber, sentir aromas e sabores diferentes, e ser feliz, não há motivo para tanta preocupação. Um pouco de cultura sobre a cachaça, no entanto, não ocupa espaço e pode tornar sua experiência com a caninha ainda mais proveitosa e divertida. No 13 de setembro, Dia da Cachaça, conheça um pouco mais sobre suas peculiaridades e sua história.
A cachaça tem alto valor agregado
Todo mundo sabe que há cachaça branca, amarela, dourada e algumas de coloração bem escura. Essa variedade de matizes tem a ver com o tipo de madeira em que o destilado é armazenado e envelhecido. Nesse quesito, o Brasil é campeão: os produtores de cachaça têm permissão de envelhecê-la em mais de 30 tipos de madeira. Os barris onde descansa não vão determinar apenas a cor do líquido, mas seus aromas e sabores, que também sofrem influência do tipo de cana-de-açúcar utilizada, das condições climáticas e de solo de cada região e dos estilos de fermentação e de destilação do caldo de cana.
“Apesar de ser um dos principais mercados nacionais do setor de bebidas, globalmente, o pequeno produtor que luta para conquistar o mercado americano tem ainda o desafio de enfrentar os produtores industriais que chegam no mercado com preços bem baixos competindo predatoriamente com os produtores de cachaça de alambique. E mostrar para o mercado que existem dois processos produtivos o de coluna ou industrial e o de cachaça de alambique, para mostrar essa diferença é preciso um investimento que os pequenos produtores não têm”, comenta.
Segundo José Lúcio, recentemente, uma marca de cachaça de alambique que estava no mercado com o valor de 15 vezes superior ao das industriais sofreu uma concorrência muito pesada das industriais e seu preço no mercado caiu pela metade.
“As empresas importadoras que trabalham com produtos de alto valor agregado sabem das diferenças entre as cachaças industriais e da cachaça de alambique, mas explicar isso para o público consumidor requer investimento que o produtor não tem como fazer, em sua grande maioria. Não tem capacidade”, pontua o especialista.
Passear pelos tipos de cachaça é um caminho quase sem fim. Além da branquinha, você pode optar por uma bebida envelhecida em jequitibá, que traz notas sutilmente doces, lembrando baunilha. A amburana, bem popular, acrescenta ainda mais dulçor à cachaça e um toque fortemente amadeirado. Bálsamo dá um caráter de ervas e especiarias ao líquido. A madeira pode esconder defeitos.
Usar madeira em envelhecimento de cachaça pode não ser exatamente uma virtude. Muitos produtores lançam mão desse recurso justamente para esconder a falta de qualidade do seu destilado base, sobretudo com madeiras bastante intensas, como carvalho e amburana. Uma dica dos especialistas para analisar a qualidade de um produtor é sempre começar pela cachaça branca, antes de provar as envelhecidas. O líquido sem passagem por madeira mostra a bebida como saiu do alambique, sem maquiagem.
Cachaça que arde é ruim?
A cachaça pode arder na goela por alguns motivos e um deles é a falta de qualidade da destilação. Outro pode ser a sensibilidade (temporária ou crônica) do seu organismo ao álcool, o que facilita a queimação no esôfago, seja com cachaça, vodca ou tequila.
Bebidas mal elaboradas, com alta concentração de metanol, costumam causar a sensação de que você está engolindo lava vulcânica. Por isso, a culpa não é da cachaça em si, mas de determinadas marcas mequetrefes. Há, porém, estilos mais ácidos de cachaça, dependendo da região de produção. E a acidez de uma bebida não é propriamente um defeito. Como identificar uma cachaça de boa precedência?
Como identificar uma cachaça de boa precedência?
A explicação é a seguinte: a cachaça ideal é a que traz prazer sensorial. Ponto. Mas é preciso tomar cuidado com destilados de origem duvidosa. Sabe a “cachacinha artesanal que o seu Manoel faz lá no sítio do vizinho da sogra do meu primo”, que chega numa garrafinha pet? Fuja. Destilados mal elaborados, com alta concentração de metanol, podem causar cegueira e até matar.
José Lúcio Ferreira alerta que é melhor escolher as bebidas de cachaças e outras categorias, em empórios e e-commerces bem conceituados e devidamente registrados. Tanto é que foi com o propósito de dar visibilidade aos produtores registrados que nasceu a Expocachaça há praticamente 18 anos, entretanto com a sua 34ª edição realizada no mês passado, em Belo Horizonte.
Ele orienta que há muitos alambiques clandestinos e a falsificação de bebidas também é um problema sério no Brasil. Portanto, é importante certificar-se de que você compra de revendedores ou produtores idôneos, pontua.
Cabeça, coração e cauda: que história é essa?
Um produtor preocupado em elaborar um destilado de excelência deve desprezar a primeira parte da destilação — a cabeça, que carrega várias substâncias nocivas ao organismo, incluindo a alta carga de metanol. O coração da cachaça é mais livre de impurezas, é a “cachaça da boa”.
O final da destilação, chamado de rabo ou cauda, tem menor concentração de álcool e também deve ser desprezado. Produtores cuidadosos costumam dar bastante atenção a esse processo, para colocar na garrafa o que de melhor a destilação possa entregar — o coração da cachaça. Embora haja exceções à regra, é geralmente mais negócio degustar cachaças de pequenos e bem conceituados produtores, e em doses comedidas. A sábia combinação: beber menos e melhor.
Se é cara, é boa?
Alguns produtores esmeram-se em produzir cachaças com longo tempo de envelhecimento, misturando líquidos de vários barris até chegar o blend que consideram único e especial. É claro que esse cuidado e o tempo de elaboração vão estar refletidos no preço. O processo de envelhecimento é mais caro do que tirar a cachaça branca do alambique e engarrafar. Em muitos casos, porém, o alto custo de uma cachaça engarrafada em cristal está mais relacionado ao luxo e ao status que o produto pretende carregar.
Como um vestido da mais alta grife, o preço embute o prestígio e os sonhos de consumo que aquela marca representa. Há muitas cachaças envelhecidas de grande qualidade por menos de 100 reais no mercado. No caso das brancas, por até menos de 50 pratas. Caso não saiba por onde começar, converse com um bartender ou sommelier de confiança para pegar algumas dicas. Rankings sérios como o da Cúpula da Cachaça, lançado anualmente, também são um bom parâmetro de escolha.
Ela também foi símbolo de independência
Os líderes da Revolta da Cachaça preferiram brindar a vitória com vinhos portugueses, que consideravam superiores ao próprio destilado que produziam. A cachaça foi mesmo tomada como símbolo de brasilidade por outro movimento rebelde que aconteceria no século XVIII.
A cúpula da Inconfidência Mineira, que queria ver o Brasil independente, bebia cachaça para demonstrar repúdio à Coroa do Portugal. Tiradentes, o mais célebre inconfidente, teria dito “molhem minha goela com cachaça da terra” antes de ser enforcado. Em 1817, a cachaça também simbolizou o nacionalismo, sendo a preferida dos líderes da Revolução Pernambucana, que boicotava os produtos de Portugal.
De onde ela veio?
A cachaça é brasileira, ora essa. A hipótese mais provável de seu nascimento é a de que, já dominando as técnicas de destilação, os colonizadores portugueses tenham feito experiências com o caldo de cana fermentado e gostado do resultado. Afinal, cana era o insumo abundante que tinham à mão, na falta das uvas com que faziam suas bagaceiras europeias.
As palavras cachaça e cachaza já existiam no vocabulário da Península Ibérica. Produzido com cana, foi o primeiro destilado a surgir na América Latina. Embora haja controvérsias sobre a data e o local de nascimento, é provável que tenha aparecido entre 1516 em 1532, em algum engenho do litoral brasileiro. Os historiadores trabalham com hipóteses distintas sobre o berço da primeira cachaça.
Há uma versão de que ela teria nascido entre 1516 e 1526 em Itamaracá, Pernambuco. Outra dá conta de que teria surgido em 1520, em Porto Seguro, Bahia. O historiador Câmara Cascudo, na obra “Prelúdio da Cachaça”, crava São Vicente, São Paulo, e 1532, como o local e a data mais prováveis.